Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.
Hoje é dia Dela, Rainha dos ventos e das tempestades. Deusa do fogo e dos relâmpagos. Uma das Senhoras da Escuridão. Minha Mãe.
Senhora das Tempestades [Manuel Alegre]
Senhora das tempestades e dos mistérios originais Quando tu chegas, a terra treme do lado esquerdo Trazes a assombração As conjunções fatais E as vozes negras da noite Senhora do meu espanto e do meu medo Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma Há uma lua do avesso quando chegas Há um poema escrito em página nenhuma Quando caminhas sobre as águas Senhora dos sete mares Conjugação de fogo e luz E no entando eclipse Trazes a linha magnética da minha vida Senhora da minha morte Quando tu chegas, começa a música Senhora dos cabelos de alga Onde se escondem as divindades Trazes o mar, a chuva, as procelas Batem as sílabas da noite Batem os sons, os signos, os sinais E és tu a voz que dita Trazes a festa e a despedida Senhora dos instantes com sua rosa dos ventos E teu cruzeiro do sul Senhora dos navegantes Com teu astrolábio e tua errância Tudo em ti é partida Tudo em ti é distância Tudo em ti é retorno Senhora do vento Com teu cavalo cor de acaso Teu chicote, tua ternura Sobre a tristeza e a agonia Galopas no meu sangue com teu cateter chamado Pégaso Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos Senhora das tempestades e dos líquidos caminhos Quando tu chegas, dançam as divindades E tudo é uma alquimia Tudo em ti é milagre Senhora da energia!
Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos — dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou.
Silêncio. Madrugada. Rua vazia. Uma lua branca de linho estendida no escuro, sobre o nada. Num momento insone, conversam confidentes Presente, Passado, Futuro. Um pensamento corta o espaço versejando a esmo. Escuto passos: é meu coração abrindo a porta de mim mesmo.
Conheço minhas pegadas, de tanto ir e vir. Às vezes pisam fundo como carregassem o peso do mundo; às vezes ficam amassadas sob o descuido das outras pegadas. Sobre elas, a lua nova desdobra sua saia em cena de nudez no chão da praia. Só perco meus passos na maré cheia: essa mania do mar de tirar seus sapatos sobre a areia. Conheço bem minhas pegadas. Sou capaz de identificá-las em qualquer lugar. Se ao menos eu soubesse aonde vão me levar...
Ain't Got No/I Got Life (tradução) Nina Simone Composição: Indisponível
Não tenho casa, não tenho sapatos Não tenho dinheiro, não tenho óculos Não tenho roupa, não tenho suéteres. Não tenho fé, não tenho barba Não tenho mente
Não tenho mãe, não tenho cultura Não tenho amigos, não tenho escolaridade Não tenho nome, não tenho amor Não tenho passagem, não tenho ficha telefônica Não tenho Deus
O que eu tenho? Porque eu estou viva? Sim, o que eu tenho? Ninguém pode se livrar disso
Este versos não são por nada muito não, são apenas a realização de um pensamento triste. Um daqueles que vem, não se sabe muito bem de onde e, com o tempo, se vão.
Este me ocorreu outro dia, estava louco por uma tragada, era um dia de fim de semana, quase certeza de ser domingo. Peguei o carro e fui até a Tijuca comprar o tabaco. Durante a viagem percebi que nunca fiquei completamente só, sempre tinha alguém, quase sempre desconhecido. Não que isso signifique alguma vantagem ou desvantagem, é apenas a constatação de um fato.
Em algum lugar de Vila Isabel ou do Maracanã este pensamento me veio a mente. Não era um pensamento alegre, era apenas um pensamento triste. Por deveras realista. Nada a ver com as possibilidades perdidas. Não imaginei coisas que poderia fazer, nos belos dias de sol na praia, nos filmes de fim de noite, nos lugares nunca dante vistos. Não imaginei nada disso. Foi um pensamento seco, vindo numa noite tépida, num momento de solidão.
Desejei a única coisa que não podia ter. Ofereceria qualquer coisa, viveria sob quaisquer circunstâncias. Mas nada disso mudaria o fato gerador do pensamento triste.
Chorei, admito que chorei, não muito, mas foi intenso. Não entrei em pânico, muito nervoso talvez. Não me lembro bem como se passaram as coisas. Só a recordação de que tive este pensamento triste.
Resolvi cumprir a minha ordália tabagista. Das várias possibilidades existentes para a compra, restavam poucos lugares abertos no Rio de Janeiro para tal, afinal, deveria ser domingo de noite. Vislumbrei que a cidade ou começou a ficar estranha para mim ou não entendi que o que realmente estava escrito no recado dado era: TU ESTÁS CONVIDADO A SE RETIRAR DESTAS TERRAS. Surgiu um conflito. Cumprir aos meus anseios por um pequeno bastão de tabaco e dar de cara com alguma ex/falecida, que obviamente não ficou bem resolvido, apesar de não fazer mais diferença; ou voltar. Letras e Expressões do Leblon, eu precisava fumar.
A que ponto pode um ser humano chegar. Não fui a lugar nenhum caro leitor, quanto mais ao fundo do poço. Mas se alguma força/ente/ser dissesse que tinha o poder de fazer o tempo voltar e que me garantisse a outra alternativa por mim desejada, acreditem, assinava sem ler. Quaisquer circunstâncias ou possibilidades. Qual fosse o preço.
Lembro com mais precisão do fato gerador do pensamento triste que veio e se foi. Foi cedo demais. Não me arrependo de nenhuma ação posterior. Apenas lamento. Lamento muito, foi-se cedo demais.
Na dúvida, faça. O risco faz parte. A graça está em tentar, em vez de sentar e assistir; o mundo está em esticar-se todo para atingir; o mundo está no desafio da interrogação. E porque não? Entre na festa, arranque a capa, morda a maçã. Desate o cinto para voar livre pelo amanhã, ainda que ele seja um labirinto. deixe o ID rolar Nesta arte viva de arriscar, cônscio e devoto. Pois que viver não é entrar no mar onde dá pé, mas mergulhar com fé no maremoto.