Arquivos novembro 2002 dezembro 2002 janeiro 2003 fevereiro 2003 março 2003 abril 2003 maio 2003 junho 2003 julho 2003 agosto 2003 setembro 2003 outubro 2003 novembro 2003 dezembro 2003 janeiro 2004 fevereiro 2004 março 2004 abril 2004 junho 2004 agosto 2004 dezembro 2004 julho 2006 agosto 2006 setembro 2006 outubro 2006 novembro 2006 janeiro 2007 fevereiro 2007 maio 2007 dezembro 2007 junho 2008 dezembro 2008
Pegue aqui o código do banner:
quinta-feira, 7 de agosto de 2003
Lembro-me ainda de que naquele momento tive quase a certeza de que o meu pai já tinha andado por aquela praça algum dia, fazia dois mil anos; quer dizer, isso se fosse verdade que uma pessoa possui muitas vidas. É que ele me contava sobre a vida na antiga Atenas como se "lembrasse" como tudo tinha sido naqueles tempos. E minha desconfiança de que ele talvez já tivesse andado por ali se fortaleceu ainda mais quando, de repente, ele parou num determinado ponto, olhou para todas aquelas ruínas e disse: - Na praia, uma criança contrói um castelo de areia. Por um momento, contempla admirada a sua obra. Depois destrói tudo e constrói um outro castelo. Da mesma forma, o tempo permite que o globo terrestre realize seus experimentos. Aqui nesta praça se escreveu a história do mundo; aqui os acontecimentos foram gravados na memória das pessoas, e depois novamente apagados. Na Terra, a vida pulsa de forma desordenada, até que um belo dia nós somos modelados... com o mesmo e frágil material de nossos antepassados. O sopro do tempo nos perpassa, nos carrega e se incorpora a nós. Depois se desprende de nós e nos deixa cair. Somos arrebatados como num passe de mágica e depois novamente abandonados. Sempre há alguma coisa fermentando, à espera de tomar nosso lugar. Isso porque não temos um solo firme sob os nossos pés. Não temos sequer areia sob nossos pés. Nós somos areia. [...] Então, perguntei: - Você acredita que haja alguma coisa que não possa ser levada como a areia do castelo que a água do mar destrói? Acho que minha pergunta o tirou de uma espécie de transe, pois só nesse momento ele parecia realmente falar comigo. E só comigo. - Aqui - disse ele, e apontou para sua cabeça. - Aqui dentro tem alguma coisa que não pode ser levada. Por um momento fiquei com medo de que ele tivesse perdido completamente a razão. Mas ele não estava se referindo apenas à sua própria cabeça. - O pensamento não pode ser levado, Hans-Thomas. De minha parte, só declamei a primeira estrofe, entende? O filósofos em Atenas achavam que também há uma coisa que não passa. Platão chamava isso de o mundo das idéias. Pois não é o castelo de areia a coisa mais importante na brincadeira da criança. O mais importante é a imagem de um castelo de areia que a criança tem na cabeça antes de começar a construir o castelo. Por que outra razão você acha que ela destrói com as mãos o castelo que acabou de construir? Tive de admitir que entendia a segunda estrofe melhor do que a primeira. Mas então meu pai disse: - ... Trazemos dentro de nós a noção de que tudo o que vemos à nossa volta poderia ser melhor do que é. E sabe porque fazemos isso, Hans-Thomas? Limitei-me a negar com a cabeça. Meu pai estava tão entusiasmado que apenas sussurrou: - Porque trazemos em nós todas as imagens do mundo das idéias. É lá nossa verdadeira morada, entende? E não aqui embaixo, no meio da areia, onde o tempo apanha e devora tudo o que amamos. - Quer dizer que existe um outro mundo? Num tom de mistério, meu pai concordou com a cabeça. - É lá que estava a nossa alma antes de vir habitar um corpo. E é pra lá que ela vai voltar quando o corpo sucumbir à ira do tempo. - É mesmo? - Pelo menos era o que achava Platão, um dos maiores filósofos gregos. Nossos corpos têm o mesmo destino dos castelos de areia. Quanto a isso não há o que fazer. Mas temos uma coisa em nós que o tempo não consegue corroer. E não consegue porque ela não pertence a este mundo. Precisamos voltar nossos olhos para além e para cima do que vemos à nossa volta. Precisamos enxergar aquilo de que tudo à nossa volta é apenas uma imitação. (Jostein Gaarder - O Dia do Curinga) Lu poesiou às 00:45 Também poesiaram: ...
Design: Lu Canuto